O animismo, dito de maneira bem simples é uma palavra que designa,
na psicologia infantil, um modo de ver as coisas do mundo pelas crianças
pequenas: trata-se de dar vida aos objetos, de enxergar e se relacionar com a
alma das coisas. “Marina Marcondes
Chão de estrelas é uma poética que expressa o território onde toda a
criança pode viver, desde que em genuína infância.
Quando as crianças chegam para um encontro no PIÁ começam a
remexer e a buscar entre velhas caixas objetos comuns, a espalhá-los, e há em
quem observa uma sensação de caos, de “descoerência.”.
Livres, as crianças revolvem caixas e garimpam seus tesouros.
Podem tocar e ser tocada por objetos sejam eles galhos secos,
velhos chapéus, panos de ásperas texturas ou macias, metais com seus ruídos, barbantes,
cabeleiras, penas coloridas, dentre eles tantos objetos “dispensados”. Elas
sempre encontram o que buscam. Depois se vestem com eles ou os combinam criando
objetos adequados a suas vivencias, ou com eles constroem suas moradias.
Cada objeto se revela ante seu olhar. E uma vez “escolhidos”
começam a integrar um estado que na falta de palavra melhor diríamos:
imaginação.
E no seu brincar livre, as crianças, simplesmente incorporam
fluxos de sensações e imagens cheias de plasticidade e movimento.
Não é o caso de representar, pois o que acontece é muito
diferente de representar, pois trata-se de algo mais íntimo: ser.
Envoltórios de panos começam a surgir. Lugares onde se pode entrar
estar, se fechar, se escurecer, conversarem, se arrastar, grunhir, cantar, pulsar,
voar.
É no chão que começam a fazer suas “Instalações”.
O que se instala?
-Estados de ser, vivencias reais, relações, contextos,
situações.
Seres recém-gerados habitam esses espaços. Vozes, entonações,
desejos, prazeres... levezas, memórias. Situações em constante metamorfose.
A criança nem sempre fica muito tempo numa só ideia. Ás
vezes fica.
O educador transita nesse espaço que pode ser uma
floresta e de repente encontra um pano
verde no caminho. Resolve se vestir e percebe que é um lagarto, mas um lagarto
hibrido (lagarto águia) e se movimenta. Logo alguma criança se aproxima e perscrutando
esse ser e surge um contexto de coexistência.
O fato de o educador artista ter um grande interesse a tudo
o que se relaciona a expressão humana o torna sensível a reconhecer e a ler nas
vivencias infantis depoimentos da realidade existencial daquela criança. Quem é ela, o que deseja o
que teme, como se expressa, que imagens carrega etc. Toda criança tem uma
riqueza de vivencias, pois independentemente das possibilidades oferecidas em
seu “habitat familiar”, pois ela possui um mundo imaginativo próprio e único onde
não se economizam imagens, emoções, sentimentos, sensações. E é exatamente esse
mundo que ganha expressão no brincar livre.
A característica principal desses “mundos” imaginativo é sua
plasticidade: uma coisa se fazendo em outra. Os
objetos externos são instrumentos “secundários” de expressão, ou melhor,
matéria prima de expressão. Por isso quanto maior é o estado de sucata do
material, (mais ele foi descontruído), mais adequado como matéria prima para o ato criativo.
Nas mãos da criança performance a obra ainda está por ser feita.
Personagens recém-imaginados se reúnem para construir seu
habitat comum: cavernas, cabanas, naves, restaurantes... ou um habitat que a nada se enquadra, algo como: strofs
natus.
O fio condutor de suas fantasias são sensações, sentimentos,
impulsos, desejos.
A linguagem desse diálogo entre crianças e educador são as
poéticas e performances de ambos. Nessa troca justa há um potencializar,
compartilhar, comover-se, refazer-se, conhecer-se, um completar-se. Na
expressão do educador está implícito o
caminho já trilhado, habilidades inclusive a de facilitador de processos.
O
educador olha para a criança (as), contempla suas vivencias e “vê”
a criança performer, revelando como ator social seus sentimentos, quereres,
afetos, desafetos, buscas bem como daqueles com os quais convive. Algumas vezes
revela até o seu quartinho escuro.
“Tudo é autobiografia” José Saramago
Observar uma sala de crianças no PIÁ é ver tudo isso acontecendo
ao mesmo tempo.
...Um grande espaço de relações. Um grande espaço de ser.
O chão seja ele de piso ou de barro se transforma num céu repleto
de crianças estrelas levitando num espaço “cósmico” de suas imaginações.·.
E depois de muito brincar, sem perceber tempo quase nenhum
passar, todos caem exaustos no chão.
E cada objeto vai sendo retirado e guardado voltando a ser um
objeto da caixa ou do armário e se “esquecendo” do que foram.
Depois forma-se uma roda de olhares e todas, uma a uma, contam
o que viveram, e o que aconteceu. É a hora do compartilhar: falar e ouvir.
E quando falam se ouvem e se reconhecem naquilo que viveram.
Estruturam e fortalecem seu pensar e mais que isso: sua individualidade. E
quando ouvem o colega se encantam com as vivencias que em alguns momentos não
foram suas, mas que lhe sugerem tantas outras sensações.
Assim as vivencias se integram numa grande história. Essas criações
podem ressurgir em outros momentos como desenhos, pinturas ou colagens em
outras tantas materialidades sugeridas pelo educador ou por elas mesmas.
O encontro vai chegando ao fim, mas ninguém quer se despedir
daquele estado de ser e o “educador” não pretende interromper o que da
criança se manifesta. “Todos se levantam e dão as mãos na tentativa de se tonar
um único ser gerando palavras representativas do encontro: alegria, cabana,
correr, dragão, etc.”.
Depois todos correm para
o centro da
roda e em uníssono, repletos de sensação e entusiasmo, gritando: _ALERRAP! ( ou
outra palavra escolhida)
Essa ação energética se repete por mais vezes.
E então as crianças, completamente felizes, correm para suas
mães e pais.
Esse é um exemplo de um dos dias de encontro no PIÁ. Esse
formato muda, mas os princípios que norteiam são os mesmos como a autonomia
criativa da criança.
E
em reuniões de pais não é raro eles dizerem que ao vir buscar seus filhos o que
levam pra casa é um pirata, ou um ser hibrido de nome estranho; e que quando em
passeio ou nas compras se surpreendem vendo seus filhos se movimentando, às vezes
dançando – interagindo com o ambiente. E que objetos da casa viram cabanas e
objetos lúdicos. Que estão mais soltos, mais sociais, mais felizes.
Nós,
educadores, aliviados, sorrimos.
Bibliografia